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JESUS MANÊRO
No ano em que a sua igreja completa 30 anos de fundação, Inri relembra os bons e velhos tempos de sua “carreira” como Messias
Leonardo FernandesUm Karmann Ghia Tc vermelho cruza a estrada de terra. O close revela Inri Cristo no volante. Ele acena para câmera e sorri. Corta para uma caminhada em câmera lenta do líder religioso acompanhado de seus discípulos, em uma cena a la “Cães de Aluguel” de Quentin Tarantino. A batida eletrônica da trilha sonora vai crescendo até culminar no refrão “Inri é o nosso Pai”.
Enquanto que o cristianismo faz questão de nos relembrar do sofrimento de Jesus adotando a cruz como símbolo máximo da sua fé, o brasileiro que se diz a reencarnação do Messias prefere o humor para propagar a sua mensagem.
No clipe em que parodia “Gangnam Style”, hit do rapper sul-coreano Psy, Inri arrisca até uma voltinha de lambreta, na qual se esforça para manter o equilíbrio sobre o veículo. Quem canta e produz o vídeo são as Inrizetes, como foi apelidado o grupo de devotas que se dedicam a louvar o seu profeta através de versões místicas de artistas da música pop como Britney Spears e Adele.
Mas houve uma época em que o mesmo homem de cabelo grande, túnica branca e fala enrolada era sinônimo de subversão. A pedra fundamental de sua igreja, a Suprema Ordem Universal da Santíssima Trindade (Soust), foi um violento bate-boca que terminou com a prisão do religioso. O que entrou para a história da seita sob os pomposos nomes de “Ato Libertário” e “Divina Revolução” foi descrito pelo extinto jornal A Província do Pará como ato de profanação, quebra-quebra e depredação.
De acordo com a matéria assinada pelos jornalistas Abnor Gondim, Pedro Coelho e Beth Mendes, no dia 28 de fevereiro de 1982, Inri, acompanhado de uma multidão de seguidores, invadiu a Igreja da Sé, em Belém, no Pará, sob o pretexto de “libertar a casa de meu Pai e desmascarar os vendilhões, como fiz há dois mil anos em Jerusalém”.
Na ocasião estava sendo celebrada uma missa para as crianças. O líder religioso começa escorraçando o diácono e a freira que estavam ministrando o ritual aos gritos de “mentiroso” e “prostituta”. Com a ajuda dos populares, Inri é carregado até o altar-mor e quebra um crucifixo. Depois de desviar de uma cadeira arremessada e se defender de uma tentativa de agressão do próprio diácono, o Cristo catarinense só foi contido por uma guarnição de 50 homens da Polícia Militar e do Corpo de bombeiros.
As fotos do incidente impressionam: mesmo detido pela PM, o autointitulado “Emissário do Pai” discursa para uma Praça da Sé tão lotada de gente que nem se vê o outro lado da rua. A repercussão do caso foi nacional, até a revista Veja publicou uma coluna sobre a multidão que ajudou um fanático a invadir a igreja. Em suma, uma pessoa bem diferente do que estamos acostumados a ver servindo de piada em programas humorísticos como o “Pânico na TV”.
No ano em que a Soust completa 30 anos de criação, Inri é convidado a relembrar os bons e velhos tempos de sua “carreira” como messias, papel que ele já assume há 40 anos. Uma tarefa difícil, já que tudo o que havia de ser dito sobre esse episódio foi explorado à exaustão pelo próprio.
A sua versão dos fatos pode ser encontrada no livro “Despertador – 2ª Parte”, uma espécie de Novo Testamento repaginado, só que contendo a história de Inri. E se os céus não lhe concederam o dom da onipresença, ele parece almejar este objetivo através da internet. Além do site inricristo.org.br, o profeta mantém páginas no Facebook, Twitter e Youtube. Esses são os principais canais de divulgação de sua fé já que a Soust não possui igreja, templo ou sinagoga, somente a sede em Brasília, que também faz as vezes de morada para ele e seus discípulos.
Mas o profeta parece ter alguns assuntos mal resolvidos em Belém. Culpa a imprensa local pelo ostracismo que experimenta. “Você me perguntou porque eu nunca mais voltei a Belém. Eu voltei, muitas vezes. Só que não deixaram que você soubesse disso. Cada vez que eu tentava reunir com jornalistas, ninguém atendia. AÍ fiquei sabendo que eles tinham ordens de não falar comigo. Você que está na mídia deve saber que isso acontece. Hoje em dia eu acho normal isso, não vá pensando que eu tenho alguma mágoa”, revela.
Por isso mesmo, a curiosidade de um repórter paraense foi o passaporte para a chácara em que Inri vive no bairro do Gama, em Brasília. Lá, Inri e seus discípulos fazem parte do folclore local. Como conta um taxista que disse ter visto um bando de periquitos pousarem ao comando do líder religioso e só ousaram alçar voo ao final de um longo sermão.
Os portões da Soust foram abertos às 16 horas em ponto. A assessora de imprensa Adeí Schmidt já esperava à porta, também trajando uma túnica, só que azul claro, que lhe cobria até os tornozelos. “A única exigência de Inri é que desligue o celular. Ele não tolera ser interrompido. E antes da entrevista ele vai proferir uma pequena benção”, diz a discípula.
Próximo à piscina, existe um pequeno auditório com um palco coberto por uma cortina vermelha. Duas discípulas descerram o pano, marcando a entrada triunfal de seu líder. Erguendo-se do trono, ele levanta as mãos para o alto em reverência e inicia um monólogo que de tão dramático chega a ser teatral: nele reafirma sua condição de messias, alerta sobre o iminente fim do mundo e divide até um pouco do fardo que é ser o Filho do Pai.
“Não escolhi ser Cristo. Não posso os obrigar a saber quem sou. Mas isso não altera a minha realidade. Pensais que é fácil obedecer ao Senhor? Os ignorantes zombando de mim? Ainda que os malignos tenham condenado Galileu, a Terra continuou transitando em torno do sol. O sol brilha e, mesmo que todos duvidassem, ele não deixaria de ser sol. Assim também como a maioria dos terráqueos não acredita que sou Cristo e continuo sendo o mesmo quando me crucificaram”, diz.
Enquanto profere seu discurso, um grupo de onze devotos se ajoelha em reverência. São homens e mulheres, jovens e idosos, todos devidamente uniformizados. Uma senhora se destaca na multidão: é a paraense Abeverê, primeira discípula do religioso e que se mantém fiel ao seu lado 30 anos depois.
Desde criança Inri afirma sofrer com sua condição. Natural de Indaial, pequena aldeia no interior do estado de Santa Catarina, Inri foi batizado como Álvaro Thais pelos pais adotivos. Largou a escola ainda criança para complementar a renda familiar. A mãe era passadeira e arrumadeira e ele ajudava carregando água. Aos quatro anos passou a ser atormentado por visões horríveis: presságios do fim do mundo que se repetiam noite após noite.
“Eu via seres rastejando sobre seus próprios membros, ouvia gemidos de dor, explosões, a terra tremia. Eu sofria, mas não podia falar com ninguém. Eu recebia a uma ordem imperativa que eu não podia revelar nada”, conta.
Na adolescência, se virou como pode: foi mascate, verdureiro, entregador de marmitas, padeiro e cobrador de ônibus. Aos 21 anos a voz na sua cabeça ordenou que começasse sua vida pública. No começo se dizia vidente, depois aos 31 anos, durante uma peregrinação em Santiago do Chile, teve uma iluminação enquanto jejuava: era o Filho de Deus.
Inri Cristo Superstar
Inri tinha 33 anos quando chegou a Belém pela primeira vez, em 1981. Fazia alguns meses que percorria o Brasil, em busca de um local perfeito para praticar a “revolução divina”. Ao chegar em Macapá, escutou mais uma vez a ordem do Pai: “‘Belém está preparada para a revolução’, disse o Senhor. ‘Ela tem todo o mistério’, disse o Senhor. ‘Até o nome dela conecta-se contigo. Lá tu tens que renascer misticamente’, Ele me disse”, garante o profeta.
Uma cidade católica por essência – o culto em torno de Nossa Senhora de Nazaré, iniciado pelo caboclo Plácido remete ao ano de 1700 -, Belém se encantou com o jovem impetuoso que afirmava ser Cristo. Por três dias seguidos ele falou na TV Guajará, operando até um milagre em frente às câmeras: um deficiente físico teria voltado a andar após receber as bênçãos de Inri.
Na sexta-feira, dia 26 de fevereiro, lançou uma convocação no programa ao vivo. Às 8 horas partiria da Praça Dom Pedro em direção à Igreja da Sé no intuito de reivindicar “o que estão roubando do meu povo”. “Foi um dos gestos mais sublimes da minha vida, quando eu libertei o meu povo, simbolicamente. Do jugo, da idolatria e da mentira. Eu vivi só para isso. Eu queria mostrar para o povo que eu não era aquele boneco”, afirma.
“O delegado proferiu uma série de elogios à minha mãe”
Depois de contido pela polícia, foi encaminhado para o presídio São José, que segundo relato de um funcionário, na época colhido pela Província, foi recebido aos gritos de “Cristo, Cristo!” pelos detentos. “Queriam me obrigar a assinar uma procuração, e eu argumentei: não tenho necessidade de advogado. Só cumpro a vontade do meu Pai. Se Ele não quiser que eu fique aqui (no presídio) ele abre aquela porta e eu saio andando por ela. E se ele não abre a porta, ele abre essa parede”, conta.
Sua rotina na cadeia era dividia entre as visitas diárias da imprensa, benção aos fieis e consultas psiquiátricas. “Eu passei 15 dias sendo examinado por psiquiatras. Era o melhor momento do dia, quando eu batia papo com intelectuais. Eram pessoas que entendiam o que eu falava. Me tratavam muito bem. Também durante os 15 dias que eu fiquei na prisão, todos os dias ia gente da imprensa me entrevistar. E todo dia saia matéria de capa”, garante.
Segundo ele, nunca foi hostilizado na prisão, exceto no momento da sua chegada à Central de Polícia, quando foi obrigado pelo delegado a se despir da túnica. “Ele proferiu uma série de elogios à minha mãe”, ironiza.
Inri exemplifica o clima ameno de seus tempos de cárcere com a seguinte história: certa vez faltou água na cela e foi dado a um balde para fazer seu asseio. Sem chance de privacidade na cela lotada, pediu ajuda de quatro presos para improvisar uma espécie de biombo. “Ou seja, bandidos aos olhos da sociedade, mas me ajudaram a tomar meu banho”, ressalta.
Depois de todo o escarcéu causado pelo profeta, ele foi solto sem sequer precisar de advogado. Um trecho do livro “Despertador” afirma que o juiz Jaime dos Santos Rocha, depois de ter defendido a internação do religioso em um manicômio por ter invadido o templo, posteriormente o liberou sem ônus sob a seguinte alegação: “Eu não te crucifiquei como Pilatos; te mantive no cativeiro para te proteger dos teus inimigos”.
Hoje, aos 64 anos, Inri olha para o passado com reverência, mas parece não desejar novos conflitos. “Eu tento me adaptar à realidade. Eu cheguei à seguinte conclusão: não adianta dar murro em ponta de faca. A única coisa que eu estou aqui na Terra pra fazer é a libertação, daqueles que querem ser livres. Eu não tenho o interesse de uma multidão de fanáticos atrás de mim, não. A minha missão é libertar a consciência. Eu queria dizer a todas as religiões que se sentem ameaçadas, que acham que eu vou roubar o cliente deles: saibam que não me interessa”, avisa.
Até as troças que fazem em seu nome ele releva e, tal qual Jesus, oferece a outra face. “Quem me olha no ‘Pânico’ não sabe como eu sou de verdade. Mas pra mim, quem me compreende, compreende. Quem não me compreende, não compreende. O Danilo Gentili, quando veio aqui, sentou aos meus pés e ficou igual um garotinho. No ar faz brincadeira e tudo, mas sem as câmeras o coração dele bate com o meu”, diz. “Sabe por quê? Os que me amam são os que amam a liberdade. E os humoristas, em geral, amam a liberdade”.
Ao final de três horas de entrevistas, o místico se despede com uma benção na qual pede para que o “Altíssimo Todo Poderoso” ilumine esta matéria. “Que te ilumine e só digas a verdade. Pode contar tudo, mas não minta. Hasta La Vista, meu filho”, diz. Quem dera todo o evangelho fosse tão descolado assim. [DK]
Dose dupla
A ponto de se tornar um discípulo do Emissário do Pai? Leia também a entrevista ping-pong com Inri publicada na edição de natal do jornal Diário do Pará: